Out on the weekend
O centro do Rio de Janeiro visto de dentro da Confeitaria Colombo numa sexta-feira à noite é diferente. E, bom, eu tenho adorado escrever sobre o centro do Rio de Janeiro desde que vim trabalhar aqui. È um lugar que eu sempre gostei, pronde me levavam na infância. A minha geração não conhece o Centro, e sequer sabe se locomover por lá. Os 50 e 60 pra cima sabem porque as manifestações políticas aconteciam por lá, assim como o Carnaval. Mas a minha geração não conheceu isso, no máximo bate ponto no polígono dos museus e centros culturais que começa na Praça XV e acaba na Primeiro de Março, com extensões pro Centro Cultural da Caixa e o Centro Cultural dos Correios, no Largo da Carioca. Pois eu faço o centro do Rio de Janeiro num pé só e até com ele nas costas, conheço cada beco, é como se eu já tivesse sido camelô lá. Explico: quem me levava pra lá na infância era uma tia minha. Que me arrastava, na verdade, pra todos os pólos culturais escondidos no centro do Rio. Eu ia sem entender mas eu ia feliz da vida. A única coisa de errado que essa tia fez comigo além de me entupir de livros, era permitir que eu jogasse milho pros pombos na Cinelândia. Aqueles ratos voadores que voam do gótico à arte moderna com a mesma cara, largando bosta envenenada na gente, ou quando muito sabiamente naquelas estátuas. As estátuas da Cinelândia são muito feias, não sei quem colou aquilo lá. E aí a gente andava da Central até o Passeio Público parando em todos os lugares e fechávamos o dia no cinema, normalmente aos sábados, e com a minha prima menor a tiracolo reclamando que era longe e não tinha ninguém na rua.
Nunca dei pela falta de pessoas no centro do Rio aos sábados porque elas realmente não faziam a menor falta quando o que eu queria entender era porque o centro era mais cinza que o resto da cidade da toda, e porque lá tudo era mais bonito e mais rebuscado e mais mais mais. E aí começa crescer o monstro ouvindo causos de arquitetura e história e Europa e colonização e nuvô e decô e gótico rococó não sei que mais assim no meio da rua.
A minha tia, que até hoje é chamada de Tia Traça por motivos óbvios, ainda contextualizava na literatura e na música, pulava do Carlos Gomes pro Vladimir Palmeira como quem pulava uma daquelas poças ali na lateral esquerda do Municipal e ainda fechava com a promessa de que a gente ia passar no MAM pra ouvir histórias sobre o modernismo, mas naquela época o que eu queria fazer lá era correr porque é enorme e tinha muito espaço e uns negócios, assim, esquisitos, que a gente ficava brincando de adivinhar o que era. Tia Traça ainda explicava as igrejas todas e contava pra gente tudo o que tinha acontecido ali no pé daqueles prédios muito maiores que a gente que só de tentar olhar pra cima eu tropeçava que nem uma mula. Mas a minha igreja preferida era a da Anastácia, aquela figura curiosa e amordaçada. Toda vez eu queria saber a história dela de novo e ficava emocionada, chorava porque eu tinha pena. Mas a minha pena era tão verdadeira que eu já esqueci a história. Mas ó, eu curtia a escrava Anastácia, tinha até um santinho dela em casa. E claro, a gente tinha que ver tudo quanto era exposição. Perdi as contas de quantas vezes eu vi exposição sobre selo, por exemplo. Mas a gente via TODAS, todas, todas até ter calo no pé.
O que naquela época eu considerava um exagero sem conseguir expressar que eu considerava um exagero me fazia muito bem. Andar léguas atrás de informação involuntariamente. Até porque quando se é criança tudo é novidade. Até revoada de pombo é novidade. Contando essas histórias eu vejo o quanto esses programas me fazem falta. Ou o quanto essa tia me faz falta. Ela continua fazendo todos esses passeios, mas agora com as amigas dela, que ficaram todas velhas junto com ela contando histórias, o que provavelmente acontecerá comigo, mas ainda não acontece (que eu me lembre..hoho). Às vezes ela me convida pra ir ao teatro, mas hoje em dia eu não tenho mais o saco que eu tinha pro teatro, quando eu ia a tudo quanto era peça infantil em cartaz na cidade e ainda pedia pra ela me levar nas que eu podia entrar. Teatro era diversão, e garantida. Ficava enfeitiçada com as “possibilidades” que a gente só vê no teatro. Máscara, maquiagem, fantasia, mentira. Vida real representação representação vida real representação vida real. A boa peça joga um monte de sentimento no palco que pra quem está na platéia é difícil administrar. O autor é treinado pro extravaso, mas o expectador, nesse caso a criança, eu, não. O teatro pra mim, no fundo, era um grande susto. Um susto bom, que me emocionava. E aí eu cresço e fico mais escrota e não consigo mais ver uma peça de teatro, mesmo depois de ter feito um breve curso de teatro. Não consigo mostrar no requebrado o que eu mostro no papel, não dá, não consigo, tenho vergonha. Embora a literatura me exponha, o que eu não considero ruim, ela não me inibe, mas o teatro me inibe. Acho que isso é recalque ou falta de costume. Pode ser, perdi o costume.
Mas eu dizia que… O centro do Rio de Janeiro visto de dentro da Confeitaria Colombo numa sexta-feira à noite é diferente porque é onde eu gosto de ir sozinha quando saio do trabalho. Eu passo parte do meu dia do lado direito da Rio Branco sentido Zona Sul, no nono andar do 124, ouvindo um enorme coro de vozes misturadas em buzinas, apitos, freadas bruscas, carros de som de passeatas que às vezes acontecem, polícia correndo atrás de ladrão, camelô correndo pra esconder mercadoria, mulher gritando porque roubaram sua bolsa, mais segredos e conversas paralelas, peidos, arrotos, escarros, barulho de salto quebrando, de bolsa arrebentando, de banco abrindo, de loja fechando, de livro caindo, de táxi, de jornal ventando na parte externa das bancas, de criança correndo, chorando e perguntando “por quê?” que nem eu fazia, de gente conspirando, de gente praguejando, de gente comendo, de gente engolindo, e de uma monte de gente pensando alto, o que no fundo faz o barulho mais alto quando eu preciso me enfurnar na multidão pra chegar ao meu destino depois das 6, que é o Cais do Porto, Praça Mauá e um ônibus leito que me traga pra Sanja. É uma música que ninguém sabe cantar, uma grande cena onde todo mundo atua sem saber. Cidade city cité, me envolvo com tudo isso e com todas essas pessoas que eu não conheço e vejo de tão perto, porque o barulho que eu faço pra beber meu capuccino e que o velho faz pra chupar essa sopa aqui do lado no Salão Pobre da Colombo faz o som da rua muito mais interessante do que qualquer coisa que agora eu possa ouvir no discman (atualizando, vocês colocariam Ipod, mas eu ainda uso discman). Até porque, aqui do lado, no Salão Nobre, rolam lâmpadas, luxos e um carinha tocando violino. Como eu disse, eu estou no Salão Pobre, onde se pára para tomar café ou chupar uma sopa ou comer doce, que também se pode comer em pé no balcão, e aqui o som do violino eu pego de lambuja. E fico conectada nele.
E é o violino tocado pelo carinha sem rosto, porque daqui não dá pra ver, que faz constatar a iluminação que eu tive hoje de manhã quando chegava à faculdade. Nessa hora eu tava de discman com um puta sono e mau humor quando começou a tocar “Mournin’ Glory Story”, uma canção do Harry Nilsson muito parecida intencionalmente com “For No One”, dos Beatles. É linda, não preciso dizer. As duas, perdão. Mas, na do Harry ACONTECE um violino que me fez pensar na seguinte cousa que eu não sei se vocês vão concordar, mas é o seguinte: certos violinos me dão a impressão de que alguém, o sujeito que toca, está DESFIANDO a música. Ao mesmo tempo que tecendo, verdade, mas predominantemente DESFIANDO-NA. Imagine a cena de alguém desfiando um tecido ou uma fita ou qualquer coisa que se faça minuciosamente com a ponta dos dedos e que exija, até, um “balé” de braços pra lá e pra cá com haste (no violino caso) e uma cabeça concentrada. Tocar violino é mais difícil que desfiar, mas e daí nada. Desfiar exige movimentos pontuais, o violino é um instrumento muito elegante, que exige no mínimo postura corporal e movimentos pontuais no braço, cabeça e ombro. Assim como é bonito alguém socando uma bateria na medida certa. Ou seja, tocar qualquer instrumento, na realidade, é uma dança. O violino de “Open your window”, do mesmo disco, o “Harry”, de 1969, também é um puta violino. Desfiadinho. Rs. Veio esse DESFIO de música clássica de graça pra mim do Salão Nobre pro Salão Pobre, assim como no roque do Harry, porque eu não paguei por esse disco mermo, eu baixei na Internet viva a modernidade uhu. Aliás, baixem de mim que é foda, “desktopicture” é o meu username no SoulSeek. E pensem comigo ou ouçam essa música. A minha sexta-feira virou uma valsa depois de tudo isso, e eu voltei pra casa com um sentimento “Out on the weekend”, do Neil Young, que tem uma bateria de chorar e uma gaita de chorar mais, e pensando que eu ia chegar em casa e botar o “Harvest” e lembrar de como eu preciso da cidade grande ou de uma cidade maior ainda, e que isso pode soar caipira, mas foda-se, eu concordo com a Seeça quando ela diz que eu sou uma forasteira. E sou, não consigo não me comover com a cidade.
Escrito em 04/06/05 e originalmente publicado no Bife Sujo.
Deeeeus do céu! Que post enorme! Um dos maiores que li aqui! Mas é tão bom, tão bem escrito quanto o seu tamanho!
HAha… tu pega o Mageli?? Parece aqueles ônibus civis de filmes de guerra no Vietnã! rsrs
Que infância privilegiada que vc teve, queria ter tido uma Tia Traça assim, que me explicasse tudo, hehehe Olha, gostei da sua definição de que tocar um instrumento é uma dança. Não toco nada, mas tenho a mesma impressão. O violino reforça essa imagem. Vai ver que é por causa da sua definição que gosto tanto de música clássica! :)