As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundície de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e os políticos e as putas vão olhar para cima gritando ‘salve-nos’… E eu vou olhar para baixo e dizer ‘NÃO’.
Alan Moore
Naquela época, eu esperava pelo metrô com as mãos suadas de água fria, olhando para trás com medo que alguém me empurrasse. Síndrome do que você quiser, meu caro. Do pânico, do terror, da ansiedade, distúrbio, déficit de atenção, a porra toda que você quiser. Eu só quero dizer que por 2 segundos eu jurava que alguém ia me empurrar e morreria ali, estraçalhada pelo vagão que não teria tempo de frear. Estou sem direção e ainda nem cheguei ao ponto. Culpa dos dedos mindinhos, não me obedecem, esses putos desgraçados. Boa essa palavra: puto. ÉS UM PUTO, queria dizer para algum homem. Qualquer um, pode ser meu pai até, meu tio que tem a voz engraçada, você… Um puto, um puto. Como de costume, estava na frente de todos, para poder entrar antes e ter mais opções – ou não, de escolher um lugar para sentar – ou não. Eram 17 horas da tarde, as chances não eram tão boas, mas vai saber, sou rainha das sortes inacreditáveis, a vida gosta de mim embora eu a maltrate um bocado. Entrei no vagão após medo ensurdecedor de ser empurrada, e para minha não compreensão de vida, senti que haviam muitas pessoas aglomeradas na área da minha porta, e à nossa esquerda, o vagão estava vazio. Nessa época eu vivia gripada, era usuária voraz de sorine, mas ainda assim, quando as portas fecharam, senti um grande cheiro de merda se alastrando com força pelo vagão. As pessoas, as pessoas, as pessoas, quantas vezes posso repetir que AS PESSSOAS, elas falavam coisas, mas meu medo de ser empurrada me faz pingar água das mãos e me deixa surda, é preciso esclarecer isso. E isso dura. Isso dura minutos. Então, as pessoas faziam elucubrações e eu não ouvia nada. Só sentia um insuportável cheiro de merda. Curiosa que sempre fui, me movimentei em direção à tal parte vazia do metrô, afinal o quê poderia estar acontecendo? E é porque sou feita de carne, ossos, sangue, merda e amor, é que quase tive um filho tamanha vontade de expelir qualquer coisa bonita que apaziguasse meu choque. O que eu vi foi um homem de terno, sentado no chão, todo cagado. Sim. Um homem na merda. Literalmente. Chorando feito criança, meu caro, meu barato. Chorando de soluçar e tremer ombros, minha cara. Minha barata. Mas as pessoas, as pessoas, as pessoas, quantas vezes eu posso repetir que as pessoas, elas estavam num zoológico, e muito espantadas faziam comentários, que agora já podia ouvir, sem o menor cabimento. A maioria, obviamente, ignorava, constrangida com o constrangimento alheio e cheirando o pulso borrifado com perfume às 8 da manhã para aliviar o terror do cheiro da merda. O homem cagado, talvez sem querer, um problema, um azar, característica das sacanagens que deus pode nos proporcionar, um peido falso, uma infecção intestinal, uma merda, uma merda mesmo. O homem de terno, bonito, eu até diria se ele um dia passasse por mim na rua e me olhasse dentro do olho e não para o meu peito. Cagado. E chorando. Naquela época eu era otimista que só, e não me conformava em ver gente na merda sem tentar sair dela. É terrível, mas não é metafórico, o que torna tudo mais cruel. O homem ali na merda própria, merda marrom, meio aguada, um cheiro que me deixava a um segundo de vomitar meu almoço infeliz com meu ex-marido. Naquela época, as crianças moravam com ele, o que todo mundo achava muito estranho, mas eu preciso confessar que eu gostava muito, Jaime sempre foi um ótimo pai. E eu, uma mãe mediana. Me aproximei do homem cagado e choroso como quem se prepara para cutucar uma espinha que já causa vergonha de sair de casa. Sabemos que não devemos, mas cutucamos. Ah, cutucamos. Porque somos putos, putos, putos. Uns putos. Não devia, pois minha vida já é bem caótica, mas era tudo tão feio, tão horroroso, era tanta merda, que era tudo lindo por demais, beleza de salivar e aumentar o tamanho do coração de uma mão fechada para todo o tronco humano. Caminhei até ele, e as pessoas ficaram chocadas com a louca que entrou na jaula do leão, da onça, do hipopótamo. Mas as pessoas são curiosas, não querem que a pessoa vá, mas já que a pessoa está indo, ora… vamos ficar aqui e observar, só um pouquinho? Vamos, ué. Eu ficaria, Jaime ficaria, as crianças ficariam, todos nós, os putos. Ficariam. Observando. Estava solteira há tempos, o amor nunca chegava até a mim, fazia sérias propagações mas nunca o sentia, de fato, na fibra dos meus dedos. E era o que eu queria. Amor na fibra dos dedos. E isso lá existe? Era o que eu queria. O homem ainda chorando e eu nessa época, tinha lenços de papéis na bolsa, achei sofrido demais. Constrangedor demais. Queria ser certeira, queria tirar toda a merda, sem ter que passar 75 paninhos molhados e essências e incensos e isso aquilo outro. Agachei, agora já pouco incomodada com o cheiro da merda – afinal, o que era a vida, o metrô, o cu dos meus filhos, o beco da minha rua, a boca de meu ex marido? – ele percebeu um corpo estranho próximo ao dele, parou de chorar e esperou por aquilo que também eu esperava: minhas palavras. Achei de bom grado, dizer-lhe: Quer namorar comigo? Eu era a criança que os lobos criaram, não tem essa história? O zoológico, as pessoas, que acompanhavam tudo pois assim é a vida, fizeram silêncio criador de cancros, de úlceras, provocadores de aneurismas, esse era o silêncio. Pois não concebiam o amor vindo da merda. Mas eu era tão cheia de vida, e tudo me parecia tão sincero e real e certo. O homem sorriu dentes que o faziam ser mais bonito e disse entre babas de lágrimas: “Perdi minha estação”.
“Pra tudo, há voltas”, lhe disse com sorriso de quem sua frio nas mãos. Dei-lhe um beijo no olho esquerdo e depois comentei com amor nas fibras dos dedos: merda é adubo.